9/21/2006

Uma música da infância

Ele ficara o dia todo enfurnado em sua casa assistindo TV. Ao cair a noite foi para o banho e vários pensamentos invadiram sua mente. Pensava no futuro, nas possibilidades que um dia poderão tornar-se oportunidades. Pensava numa vida futura que não coincidia com a presente. Todas as oportunidades que criava mentalmente eram agarradas com toda sua abstração como uma opção de vida. Mas tudo estava longe. O momento era vazio. Não havia nada que o preenchia. Ao sair do banho deparou-se com o semblante de seu pai, que o olhava com piedade. Lembrou-se que morava sozinho e que não havia mais ninguém em sua casa. Aliás, a solidão era uma constante em sua vida. Percebeu que o olhar de seu pai era na verdade seu rosto refletido no espelho e viu o quanto estava mergulhado no passado e que todo aquele futuro idealizado era uma doce ilusão da sua própria dor.Vestiu-se e pôs-se a perambular pelas ruas. Passou em frente de um bar e ouviu uma música que o fez lembrar de sua infância. Uma força desconhecida o atraiu para dentro. Entrou e assustou-se ao ver que todos no bar estavam nus. Havia quatro mesas redondas das quais duas estavam ocupadas. Na primeira havia um grupo de amigos bebendo e conversando. Na última mesa, quase na penumbra, avistou um casal que sussurrava palavras ao pé do ouvido um do outro. Provavelmente palavras de tom sexuais, pois o homem estava com seu membro semi-ereto. À esquerda, havia três bonitas mulheres no balcão, bebendo e rindo. O barman era um homem gordo com apenas uma gravata borboleta que o olhou com certo ar de interrogação. Outro aspecto que o chamou a atenção foram os quadros na parede. Eram fotografias de pessoas vestidas com roupas pretas mostrando apenas os olhos, parecido com algo que já avistara em outra ocasião que não lembrava exatamente onde. Ficou parado e não acreditava no que estava vendo. Sua incredubilidade foi interrompida por um garçom, também usando apenas uma gravata borboleta, mas com a significativa diferença de ser um homem belo e com formas definidas.
- O senhor poderia me acompanhar – interpelou o garçom com uma voz suave.
Com um olhar de quem acabara de acordar no presente, olhou para o garçom e consentiu sem pensar no que poderia lhe acontecer.
- Por aqui, por favor – insistiu o garçom mostrando-lhe um pequeno corredor à direita que desembocava em uma pequena sala repleta de cabides e algumas roupas dependuradas.
- Fique à vontade – exclamou o garçom, saindo logo em seguida e lhe dirigindo um sorriso malicioso.
Na verdade, não sabia se o sorriso acontecera realmente ou se era fruto de sua imaginação. Ficou por alguns segundos sem saber o que fazer e pensando nas três garotas do balcão. Lembrou-se das possibilidades que imaginou no banho e aquele momento transformou-se em oportunidades que lhe apresentava aos olhos do presente. Parou numa profunda angústia por alguns segundos. Estava estático e até esquecera o motivo que o fez entrar naquele lugar: a música que já não se ouvia mais.

9/19/2006

Universo Paralelo

- Eles estão me seguindo! – gritou ao médico.
- Eles quem? – perguntou o especialista com paciência.
- Os iguais ao senhor, mas de outro tipo – declarou com perplexidade.
- Que tipo?
- Daqueles que cortam o cérebro para estudos.
- Eles querem cortar seu cérebro?
- Sim.
- Por que?
- Descobriram meus segredos e querem estudar como eles foram arquitetados pela minha mente.
- Você pode os contar para mim?
- É claro que não! – disse impacientemente – O que posso dizer é que tratam de segredos sobre a essência humana – completou o paciente.
- Como o descobriu? – replicou o médico.
- O caminho não lhe posso descrever. É por isso que querer me cortar o cérebro, para descobrir como as sinapses ocorrem e produzirem outros iguais a mim. Formar uma nova sociedade cujo princípio estará pautado na própria essência do homem, mas eles não percebem...
- Percebem o quê?
- Você está indo longe demais. O que de fato quer saber? Não confio em vocês. São todos iguais!
- Pense comigo – convidou o médico – isso não seria bom. Saberem como chegar à essência humana e construir seres humanos melhores.
- Você não entende... está preso ao paradigma. Vive cercado por ele e não consegue sair para ver além do seu mundo interior. Não consegue fazer as conexões entre as informações e a realidade. Só vive de informações vazias e sem sentido para vida real. Mas eu lhe entendo, aliás, também tenho que fazê-lo. Caso contrário, não suportaria viver na essência. É perigosa!
- Por que é perigosa?
- Ora, por si própria. Você conseguiria suportar saber quem é você e qual o seu destino? – disse ao paciente com displicência.
- Mas não é esse o objetivo da nossa existência? Saber quem somos e para onde vamos! – retrucou o médico com convicção.
- És ingênuo! Se soubesse o que sei nunca diria isso.
- O que te faz pensar que só você sabe disso e que não pode contar a ninguém?
- É exatamente isso, contar deixaria de saber, o que acarretaria grandes desastres para todos. Inclusive para o senhor – disse essas últimas palavras olhando-o fixamente nos olhos.
O médico sentiu-se penetrado por aquele olhar. Ficou inibido e pôs se a olhar para os papéis que estavam sobre a mesa. Ficaram ambos em silêncio por alguns segundos que pareceu uma eternidade. O médico interrompeu aquele silencio com um rosnar e declaro desconcertado que a seção havia terminado. No entanto, ele próprio não percebera que Roberto havia deixado implícita a explicação da própria essência que havia descoberto em seus devaneios.
Roberto deixou o consultório, as indagações ainda continuavam nos pensamentos do médico. Não conseguia deixar de pensar o que Roberto sabia ou acreditava saber. Sentia que havia algo de sincero e importante, no entanto, sabia que tudo poderia ser uma ilusão que Roberto criou para conseguir viver em sociedade. Sentia que algo em seu íntimo estava em sintonia com os sentimentos de Roberto, mas não conseguia descrevê-los ou interpretá-los de maneira racional. O que mais o instigava é que Roberto destruiu todos os valores e concepções que havia construído durante sua vida. Aliás, este foi o principal motivo que o levou ao seu consultório, pelo aparentemente. Lembrou-se do primeiro dia que Roberto apareceu em sua frente. Estava em pleno desespero e tentava aceitar as convicções que ele próprio destruíra. É claro que teve essa noção com o passar do tempo, mas naquele momento parecia que Roberto estava anunciando que algo de importante aconteceria. Tentou lembrar o que era, mas não conseguiu. Pegou o histórico e foi para primeiro dia de atendimento:

14 de maio de 2000 – Roberto Fantine apresenta sintomas proféticos. Declara que descobriu algo de importante sobre o homem e que um desastre está prestes a acontecer. Falou da morte de milhões de “partículas” e que as viu em um sonho. Há séria possibilidade que tal sonho tenha sido alucinação, pois não dorme há dois dias seguidos e disse que o ocorrido foi durante esse período. Encontra-se em desespero.

O médico tentou lembrar de mais alguma informação que ajudasse a entender o desenrolar da história. No entanto, estava cansado e não conseguia mais pensar.

***

Roberto saiu do consultório e foi caminhar pelas ruas. A maior parte do percurso havia grandes lojas de vários produtos, desde alimentação a automóveis. Sempre olhava com admiração e inquietude todas aquelas pessoas conversando com os vendedores, estes sempre com suas táticas miraculosas de convencimento apreendidas no Manual do Bom-Vendedor. Tudo lhe era estranho, parecia-lhe que os produtos com seus recursos e benefícios ofuscavam o contato humano. Sentia uma efemeridade naqueles contatos que eram projetados aos próprios produtos comercializados. No caminho sempre que cruzava com pessoas de branco tentava desviar o caminho. E nunca olhava diretamente nos olhos das pessoas que lhe apresentassem ares de desconfiança. Estava passando em frente a loja de vestuário quando avistou um homem de branco vindo a sua direção. Com um movimento rápido mudou para o outro lado da rua. Após o homem passar avistou um pequeno envelope caído ao chão. Normalmente não teria percebido. No entanto, a qualidade e o cuidado com que fora produzido chamaram sua atenção. Não lhe parecia um papel comum, destes de propaganda que normalmente infestam os centros comerciais. Abaixou-se e pegou com firmeza. Continuou andando e com ar desconfiado olhou para os lados e abriu o envelope. Nele havia um pequeno papel que estava escrito:

Roberto Fantine,
Eu sei. Entendo suas angústias. Venha me encontrar amanhã à meia-noite em frente ao cemitério. Não falte!
U.P.

Roberto entrou em pânico. O primeiro pensamento foi fugir e se esconder de todos, pois o remetente provavelmente estaria ainda por perto. Apressou o passo e ora ou outra olhava para trás para certificar se alguém o estava seguindo. Estava em direção a sua casa, mas pensou: “se eles me encontraram na rua, possivelmente me encontrarão em casa”. E continuou: “nenhum lugar está seguro!”. Mesmo com tal pensamento não encontrou outro lugar senão a casa. Correu. Morava sozinho em um pequeno apartamento alugado no 13º andar. Chegou ofegante. Entrou, trancou a porta, fechou as janelas e cortinas e tentou se acalmar. Seu coração palpitava de tal maneira que era possível escutá-lo. Passado alguns minutos após retomar a respiração começou a refletir nos escritos.

Eu também sei.
Sentiu pertencimento misturado com angústia, pois como ter certeza que ele realmente sabia. “Quem era ele?”, se indagou. Começou a pensar nas iniciais “U.P.”. “Quem poderia ser?”. Nada lhe vinha à mente. Não conseguiu encontrar nenhuma conexão com a realidade comum, a realidade que vários grupos pertencem sem estarem inseridos. Procurava nas inicias algo que lhe desse o tom de uma linguagem comum em que todos compartilhem, mas o intento foi interrompido com o bater na porta. Assustou-se e ficou esperando sem saber realmente se ouvira de fato o bater ou se era fruto de sua imaginação, de um estado de delírio. Queria confirmar deixando com que batessem novamente. Após alguns segundos as batidas foram repetidas. O estado de delírio se tornou uma realidade que o dava medo. “Quem será?”, pensou. Era quase 23h e não estava esperando ninguém. As batidas se repetiram agora com mais vigor. Pensou em ficar quieto na esperança que a pessoa desistisse e fosse embora, mas logo percebeu que a luz acessa o entregara. Guardou o bilhete no bolso e levantou-se do seu divã e foi atender. Olhou pelo olho mágico e viu que era um amigo que há meses não via. Jones, um amigo de faculdade que vez ou outra lhe fazia companhia em festas e bares que freqüentavam na época da faculdade. Jones sempre fora uma boa companhia nas horas de discussão sobre as relações pessoais e sobre filosofia ou economia política. Ficou ressabiado, mas abriu a porta. Ele estava com certo ar assustado. Usava um casaco preto surrado pelo tempo. Os olhos impacientes e a procura de algo que o detivesse a atenção, algo que lhe desse forças para continuar a falar.
- Olá, Jones! – disse Roberto tentando demonstrar admiração pela visita.
- Olá, Roberto, você está sozinho? – perguntou procurando enxergar alguém atrás de Roberto.
- Estou, mas porque está assustado? Entre, vamos. O que aconteceu? – perguntou Roberto.
- Ainda não sei exatamente.
- Acalme-se! – Roberto tentava dominar a situação para acalmar o amigo. Ofereceu-lhe o divã para sentar e se acomodou na poltrona localizada ao lado dele.
- Agora diga, o que está acontecendo?
- Veja! – Jones retirou um pequeno pedaço de papel do bolso e entregou ao amigo. Roberto ainda tentava controlar a situação. Até perceber que o papel parecia com o que encontrara há horas atrás. Cautelosamente começou a abri-lo. E assim o feito por inteiro, pôs-se a ler com atenção:

Jones Silva
Tenho algo que lhe interessa. Tudo irá mudar. Venha me encontrar hoje à meia-noite em frente ao cemitério. Não falte!
U. P.

Roberto não sabia o que dizer. Ficou em silêncio por alguns segundos, olhou para Jones com curiosidade e perplexidade. Jones continuava impaciente. Percebeu que o amigo terminara de ler e começou a explicar:
- O pior, meu amigo, ainda está por vir. Preciso lhe explicar como este pequeno bilhete chegou as minhas mãos. Há duas horas atrás, estava em um café com a Raquel conservando sobre nossos projetos. Ao fundo havia um senhor de meia idade tomando um café e lendo o jornal. Percebi que em alguns momentos parecia que nos vigiava. Não dei muita atenção, pois provavelmente tratava-se de minha imaginação. Continuamos conversando, foi quando a Raquel resolveu ir ao banheiro. Fiquei sentado revisando algumas anotações e concentrado. Passado alguns minutos percebi que o homem também foi ao banheiro. Continuei concentrado por mais alguns minutos e comecei a me preocupar com Raquel, pois estava demorando. Foi então que resolvi verificar se tinha acontecido algo. Fui até o banheiro e a chamei. Ninguém respondeu. Percebi que a porta estava entreaberta e entrei. Não havia ninguém, apenas este bilhete sobre a pia. Fiquei sem saber o que fazer. Foi quando pensei em você e corri para sua casa. E aqui estou.
Roberto fitou-o por alguns segundos sem saber o que dizer. Algo estava estranho em sua história. Ficou com receio de lhe mostrar o seu bilhete, pois assim o fazendo tornaria seu cúmplice de algo que ainda não conhecia em detalhes. Perguntou o que estava planejando fazer. Jones respondeu que não sabia, e que a visita tinha exatamente a intenção de pedir a opinião do amigo. Roberto então resolveu lhe mostrar o seu bilhete.
- É estranho Jones, coincidência ou não, eu também recebi um bilhete parecido. Veja!
Retirou-o do bolso e entregou. Enquanto Jones o lia Roberto explicava como o havia encontrado.

***

Ambos ficaram perplexos diante da situação. Não conseguiam entender o que estava acontecendo. Começaram a criar teorias conspiratórias, mas sempre havia algum furo na história. Eram poucas informações e as que tinham não faziam conexão umas com as outras. “E Raquel, onde será que está?”, questionou Roberto ao amigo. O fato era que já estava próximo à meia-noite, e Jones tinha que tomar uma decisão. Foi então que Roberto propôs que fosse ao encontro e que ele ficaria escondido observando. “E o que digo, o que faço?”, indagou Jones. Roberto apenas orientou que tentasse retirar todas as informações sobre o que estava acontecendo, principalmente, se a Raquel estava envolvida. Jones, mesmo aparentando insegurança, decidiu seguir o plano.
Jones foi à frente, enquanto Roberto o seguia, conforme o combinado. Quando chegou à porta do cemitério o portão estava entreaberto e havia um pequeno bilhete entre as barras de ferro e o muro. Jones o pegou nele havia escrito:

Jones Silva
Entre, siga uma quadra e vire à esquerda!
U.P.

Jones sem pensar muito resolveu entrar. Como sabia que havia apenas aquele portão, Roberto ficou esperando. Ao passar cinco minutos ele se preocupou com o pior e resolveu seguir o amigo. No entanto, assim que começou a sair do esconderijo um homem vestido com uma capa preta e um chapéu saiu pelo portão. Ficou na dúvida entre verificar se algo aconteceu ao amigo ou se seguia aquele ser estranho. Não demorou muito a decidir. Seu espírito heróico e todo o simbolismo que envolvia aquele homem fizeram com que tomasse a decisão de segui-lo. Estava com andar apressado e sempre olhava para os lados para conferir se alguém o estava seguindo. Como Roberto era muito discreto sempre conseguia esquivar-se de seus olhares desconfiados. Entrou em um casebre simples, cor laranja e com um singelo jardim com um corredor que levava à porta de entrada. No alto do telhado havia alguns pilares que provavelmente não serviam pra nada, coisas desses arquitetos que acreditam que o inútil é belo. Ficou esperando em torno de meia hora contemplando todos os detalhes da casa. Lá estava ele encantado com aquela casa. Conclusão! Resolveu entrar. Bateu antes, é claro. Quando a porta se abriu apareceu um homem alto, moreno e pediu para que entrasse. Ele tinha cara de poucas palavras, e realmente foram poucas as palavras que proferiu, mas com tão intensidade e objetividade que deixou Roberto tonto, simplesmente perguntou:
- Quem é o alvo?
- Como assim? Quem é o alvo? – questionou Roberto.
O silêncio tomou conta da sala. Ficou contemplando nosso amigo por alguns segundos, como tivesse o decorando. Olhou bem para os seus olhos e disse:
- Quem te mandou?
- Ninguém! Vim por conta própria – respondeu com medo da própria resposta. Foi então que Roberto percebeu aquele era um lugar que transpirava cheiro de morte. Não aquele ar nostálgico e tranqüilo presente nos cemitérios, mas algo revestido de terror e angústia. Roberto sentiu-se mal e a vontade de sair daquele lugar se intensificou de tal forma que tentou enganá-lo se explicando:
- Na verdade, eu gostei de sua casa, gostaria de saber quem foi o arquiteto – ”Idiota!”, pensou Roberto, “É claro que isso não foi uma boa explicação”, mas nesses momentos de pressão não conseguia elaborar grandes teorias sobre a psicologia humana e acabava sendo vítima dela mesma.
- Não sei – respondeu o estranho com voz seca e com um olhar de poucos amigos. Roberto até tentou verificar os outros cômodos da casa para ver se encontrava aquele homem que o fizera entrar naquela situação. Em vão, pois todas as portas estavam fechadas, e tudo ao redor era obscuro e indefinido para olhos distantes.
- Bom! Neste caso, vou embora – interpelou nosso herói.
Numa tentativa de fuga começou a se virar, quando o homem agarrou em seus braços, revirou-o e olhando atentamente nos seus olhos disse:
- Se contar a alguém do que ouviu, ou viu aqui, você será o alvo! Compreendeu?
- Sim claro! – é claro que havia entendido que ele estava ameaçando-o.
De repente, em um gesto ágil e preciso ele retirou a carteira do bolso de Roberto, abriu, verificou seus documentos e decorou seu nome. Naquele momento Roberto ficou gelado. Suas pernas bambas. Todas suas forças transformaram-se em fraqueza. Mesmo assim, buscou algo de seu interior que até o momento era desconhecido e frisou, com todo seu bom senso, que não contaria a ninguém. De fato, não pretendia contar isso a ninguém, exceto se as circunstâncias o forçassem.
Quando estava saindo da casa, embora confuso, sentiu um leve cheiro de perfume de mulher e avistou uma pequena porta que provavelmente dava para o subsolo. Aliás, a única coisa que conseguiu avistar na confusão das imagens que vieram à sua mente. Sua curiosidade foi maior. Sem muitos pormenores foi em direção à pequena porta. Assim que abriu Raquel estava sentada em uma cadeira e o homem de capa preta que o levou até ali estava em um canto do pequeno quarto de costas. Assim, que percebeu a porta se abrir viro-se para Roberto. Aquele homem de preto na verdade era seu amigo Jones. Não conseguiu disfarçar seu espanto ao vê-los. Até tentou dizer alguma coisa, mas as palavras não saiam de sua boca. Foi então que Jones tomou a iniciativa e começou a dissertar:
- Bem, não esperávamos que você nos encontrasse aqui. Mas já que isso aconteceu, teremos que te explicar algumas coisas. Sente-se, por favor – Jones foi pegar uma cadeira que estava ao fundo do cômodo. Raquel não olhava para Roberto. Estava de mãos cruzadas olhando para baixo. Jones abriu um pouco a roda e inseriu a cadeira entre eles. Roberto sentia que havia sido enganado, principalmente pelo amigo, sentou-se e perguntou com ar de irritação.:
- O que está acontecendo?
- Calma Roberto! – interpelou Raquel olhando em seus olhos. No mesmo instante Jones tomou a palavra:
- Vou tentar ser o mais direto o possível. Existem alguns procedimentos que tínhamos que seguir e você fazia parte de um deles. Não era nossa intenção te enganar, mas era preciso para que o plano desse certo. Não era para você nos encontrar. O plano era você se encontrar apenas com o Júlio – após uma pequena pausa Jones continuou: - Em maio de 2000, você me procurou para executar um plano seu. Não irá se lembrar porque logo depois foi para o médico e iniciou um tratamento com medicamentos que o fizeram esquecer ou transformar tudo em um pseudoilusão. Estava muito sério naquele dia e embora o plano fosse absurdo, esse tom me levou a segui-lo em frente. Você tinha quase tudo planejado, faltavam apenas alguns detalhes que seriam por minha conta. Na época você me ofereceu 500 mil reais para contratar um homem para te matar. E esse homem é aquele que está lá em cima. Tudo estava planejado para amanhã, conforme o combinado em seu bilhete.
Quando aquelas palavras foram proferidas, Roberto ficou em estado de semi- consciência. Começou a se lembrar de algumas coisas, mas ainda faltava algo para dar sentido em tudo aquilo. Lembrou-se do encontro com Jones, mas não recordou-se com detalhes da conversa, principalmente, do provável motivo que o levara a contratar o amigo para tal intento. Jones continuou lhe explicando. Disse que os bilhetes foi idéia dele e que todo o ar de mistério também. Depois de respirar fundo, Jones retomou a narrativa:
- Naquele fatídico dia, tentei lhe convencer do contrário, mas foi impossível. Pois você nunca me disse os reais motivos, então tudo que falava era como palavras ao vento. Confesso que não foi só pelo dinheiro que aceitei, mas no seu olhar havia algo de importante que merecia minha solidariedade. Confesso que também não segui a risca suas palavras, a Raquel não fazia parte dos planos, ela foi uma confidente de minhas angústias, não iria conseguir sem ela. Bom, aqui estamos nós. Júlio é o homem contratado para te matar, sua presença aqui foi apenas para ele te conhecer, detalhe que você fez questão de frisar quando me pediu ajuda.
Todas aquelas informações foram como um soco no estômago de Roberto. Tudo que sentiu naquele dia dois anos atrás, voltou como um raio que resplandece no céu em uma tempestade. Ficou tonto, ao ponto de quase desmaiar. Era preciso tomar uma decisão. Parar com o plano ou continuar como nada tivesse acontecido, o que seria quase impossível, pois a consciência traria uma dor pior que a própria morte. Tudo começou a fazer sentido, ou ter significado para ele. Suas neuroses, suas visitas ao médico. Eram apenas sinais de algo que seu subconsciente tinha ciência. Jones interrompeu seus pensamentos insistindo:
- Roberto! Temos que tomar uma decisão. Julio está lá em cima com a ordem de matá-lo. O que vamos fazer?
Para decidir era preciso relembrar o motivo. Embora Roberto sentisse toda angústia de um suicida, não tinha claro o motivo desses sentimentos. Era apenas um sentimento que o invadiu, sem razões, sem causas. Eram como formas sem conteúdo. Algo preestabelecido em sua mente, que de certa maneira conseguia controlar. Ficou por alguns instantes sem pensar em nada e em um suspiro lamentado declarou:
- Cancele tudo!
Jones sem muito questionar, abriu a porta e subiu as escadas. Roberto ficou a sós com Raquel. Era uma mulher com traços finos, cabelos longos e negros e olhar penetrante. Algo o deixou inquieto: percebeu que Raquel foi o detalhe que atrapalhou os planos. Um detalhe não planejado: uma mulher. Apenas sua existência na história de Jones fez com que suas ações não fossem previstas, ou pelo menos, parte delas. Levantou seus olhos para aquela mulher olhou dentro de seus olhos como pudesse ler sua alma. E percebeu que tudo até ali não era sua vida, apenas parte de um universo paralelo.

9/08/2006

A escolha de um destino

Harry sabia o significado das coisas, mas não sabia o seu destino. Também temos que entender o contexto de seus pensamentos. Era domingo. Ele viajara o dia todo e foi na viagem que tomou consciência. Já vivia toda aquela situação, apenas não entendia. Diziam que a genética era a culpada. No entanto, para ele que seguia princípios filosóficos procurava outra resposta para sua calvície. A consciência deu-se a partir da leitura de Kundera, que lhe falava: “(ele mesmo ria ao pensar em sua carta de adeus: nunca aceitarei ser calvo: adeus!)”?. Harry sabia o significado. Entendia cada vírgula, cada parênteses e ponto final de sua situação, mas não sabia o destino de tudo isso. Afinal, o futuro só pertence ao futuro. Procurava uma resposta, mas estava cansado. Afinal, viajara 9h ininterrompidas.Quando foi fazer a barba, percebeu que poucas pessoas o entendiam. Naquele momento pensava em Nietzsche, que lhe dizia: “A verdadeira felicidade de minha existência, talvez a sua peculiaridade, consiste no seu destino: eu, para exprimi-lo em forma enigmática, como meu pai, já estou morto; como minha mãe, ainda vivo e envelheço”. Começava e entender que a razão de sua calvície era sua mãe, tanto genética, quanto filosoficamente (ou psicologicamente para os edipianos). Estava no auge desse pensamento, quando tocou o telefone. Limpou-se do creme de barbear e foi atender.
Uma conversa inesperada
- Alô!- O que você estava fazendo? Faz meia hora que estou ligando e você não atende. Tenho certeza que está com outra. Quem é a vagabunda? – era uma voz firme e agressiva que refletia segurança em seus pensamentos.- Você deve estar equivocada. Eu não sei do que está falando – respondeu com ar de irritação, embora tentasse transparecer certa serenidade.- Não se faça de idiota. Eu sei que está com outra. E não vem me dizer que é sua mãe, pois dessa vez não acredito.Coincidência ou não, ela sabia que ele estava em companhia de sua mãe, mesmo que em pensamento. Então antes que desligasse o telefone tentou lhe explicar mais uma vez:- Já lhe disse que você deve estar equivocada. Eu não sei do que está falando, deve ter ligado errado.- Impossível! Você está dizendo que não seu meu destino?Não conseguia entender como aquela mulher desconhecida conseguia decifrar todas suas indagações. Ficou confuso com toda situação. Não sabia mais o que dizer. E num ato precipitado disse a mulher para comprovar com seus próprios olhos e lhe deu o endereço. Ela o anotou e inesperadamente disse que o procuraria, desligando o telefone logo em seguida.
A espera
Ao desligar o telefone não acreditava que no que havia acontecido. Ficou perplexo e não depositou crédito no intento da desconhecida. Tentou retomar seu pensamento, mas foi em vão. Olhou-se no espelho e já não conseguia mais fazer a barba. Sentiu-se repúdio de si. Auto-peidade junto com autodestruição. Queria matar, morrer. Qualquer coisa que estivesse ligado à morte o satisfaria. Tudo por razão de um telefonema inesperado, equivocado. Uma situação dessa o fazia pensar nas oportunidades que perdera na vida. O acaso era algo que temia e amava. Esperava encontrá-lo no bar, na rua, na livraria, no restaurante, etc., mas sempre procurava dentro do espelho. Vivia a eterna busca contraditória de ligar sua individualidade ao coletivo. Harry morava sozinho. E era isso que o impedia de se matar. Ficava imaginando seu corpo definhando dias e dias até algum vizinho intrometido ver que não havia mais movimento na casa, sentisse o mau cheiro e averiguasse a situação. Na tentativa de afastar tais pensamentos voltou a pensar na mulher desconhecida. Começou a acreditar que ela poderia aparecer de repente em sua casa. Afinal, ela parecia estar fora de si. A autodestruição foi substituída pela angústia, ou ambos, já não sabia o que sentia. Perambulava pela casa sem rumo certo. Procurou o que fazer, mas nada lhe centrava a atenção. Nunca sentiu tanto a falta de alguém como naquele dia. Queria sons e colo e olhos e pele e cheiro e gosto. Não queria mais pensar. Queria sentir. Sentir a dor de um amor, de uma paixão. Pegou seu casaco e saiu.
O ponto de mutação
Era uma noite fria de inverno. Seus lábios estavam rachados pelo vento frio e seu olhar perdido no infinito. Toda mulher que cruzava seu caminho pensava na possibilidade de ser a desconhecida. Pensamento em vão, pois nem imaginava como era. Queria interpelá-las, mas faltava-lhe coragem. Caminhou até encontrar um bar. Nunca freqüentava os mesmos lugares. Gostava de entrar em lugares desconhecidos para quem sabe encontrar um acaso. O bar cheirava maconha e tocava Bob Marley no fundo. Havia três rodas de pessoas fumando a erva. Inseriu-se em uma e ali aconteceu o ponto de mutação. O ponto de mutação significa o salto qualitativo de algo que vem se piscosomando em uma existência. É a soma de fatores e sentimentos que se interligam a uma pessoa e uma realidade específica. É o mesmo que criar um sonho que encaixe no próprio sonho. E para Harry os elementos dessa soma era a paixão negada pela sua própria inexistência real. De fato, o motivo dessa inexistência era o próprio medo de não ser correspondido. O que naquele dia aconteceu. Ele realmente não entendeu o porque da superação do medo, mas isso não importava. Então deixou transbordar tudo que havia dentro de si, ficando perdido sem saber mais quem era. Estava apaixonado. Quase todas suas paixões eram inventadas. Entregava-se tanto que sempre invertia a situação. Em outras ocasiões, quando se interessava por alguém criava uma relação tão intensa que estabelecia laços de amizade e não conseguia voltar com êxito à paixão. Ficava preso em sua própria entrega. Por isso preferia inverter e antecipar a declaração. O problema é que as mulheres nunca entendiam tal situação. Julgavam-no como precipitado. De fato era. Mas fazer o que? Não conseguia trair seus impulsos e desejos. Não tinha nada a perder. Horas a trás pressentia que seu destino era a solidão, então depositou grandes esperanças nessa loucura que inventou.Foram para sua casa. Seus sentidos estavam alterados. Não sabia bem ao certo como agir. Tentou fazer tudo com perfeição, mas se atrapalhava nos movimentos. Era como se fosse sua primeira vez. Precipitou-se no gozo. Afinal, não conseguia trair seus impulsos e desejos.
Uma letra (des)conhecida
Acordou no outro dia ao lado da mulher. Estavam nus. Seu corpo era lindo e suas curvas perfeitas. Não conseguia tirar os olhos dela. Tentou lembrar do início da conversa, mas não conseguiu. Afinal, ter coragem para superar o medo e o remorso do passado o lançou a uma dimensão para além do imediato. Lembrava que ao passar o temor inicial, seus sentidos o guiaram para o mais profundo de seu interior. Os olhos de sua “escolhida” o deixaram na solidão de seu próprio deserto. Mas mesmo só, estava feliz por tê-la encontrado. Em toda sua vida ele considerava ter namorado de fato apenas uma vez. E avaliava que nesta única e atormentada vez ele quem foi o escolhido, talvez pelo acaso, ou talvez pela sua própria companheira. Não importa. O fato é que toda vez que ousava escolher, algo maior interrompia seu futuro. Por isso atribuía um grande valor a suas escolhas, pois acreditava ser dono de seu destino amoroso. E estava disposto a tudo para construí-lo. Estava disposto a se entregar por inteiro como na sua primeira vez. Mesmo não conhecendo as virtudes, defeitos e manias de sua “escolhida”. Paradoxal e irracional? Sim, mas nunca procurou razão para estes momentos, pois não havia.Levantou-se. Olhou para as roupas jogadas pelo chão do quarto e avistou um pequeno pedaço de papel. Percebeu que não era sua letra. Não conseguia lê-lo. Agachou-se, pegou e viu seu endereço escrito nele.

O Telefone

Ele estava sentado à mesa quando o telefone tocou. Ficou olhando e pensando quem poderia ser àquela hora da madrugada. O primeiro pensamento foi de uma notícia de falecimento. Mas quem teria morrido que merecesse a sua atenção? Quem precisaria de seu consolo, seus pêsames? Não conseguiu encontrar ninguém no passado de sua memória. Resolveu não atender. Após cinco minutos o telefone toca novamente. O desejo de não atender sobrepôs a qualquer sentimento de compaixão pelo próximo. Odiava tentar sentir a dor alheia, não por uma questão de egoísmo, mas por ter a consciência que é um estado impossível e degradante do homem. Para ele a dor e o prazer sempre circularam na esfera individual e qualquer tentativa de solidariedade emocional seria uma falsidade moral condicional. De fato, era uma tentativa de racionalizar a dor que, paradoxalmente, o fazia sofrer, mas com a sutil e importante diferença de ser o seu próprio sofrimento e não uma simpatia cristã pelo sentimento do próximo.Resolveu atender! Em vão, pois assim que pegou o telefone já não havia mais o outro. A curiosidade instaurou-se em sua mente e o inferno em seu coração. Irritou-se com todas formas de comunicação moderna. Questionou-se porque o homem criava instrumentos para sua própria tortura emocional. Por que tanto masoquismo científico? Pra que tornar a natureza um instrumento de contemplação da onipotência científica? Por que se preocupar em ser, quando de fato o importante é apenas ser? Quanta mediocridade humana. No entanto, ao lado desse tormento, existia algo de bom: a solidão. Começou a encarar todas essas inovações como um mecanismo ortopédico social que lhe proporcionava o prazer da solidão. Sentia-se bem no retiro de si mesmo, pois para ele a solidão não era isolamento, mas uma busca de diferentes formas de comunicação que atendessem aos seus desejos secretos e nefastos. Era um olhar para si e enxergar o outro dentro dos seus próprios olhos e encontrar o caminho para satisfazer seus sonhos.Continuava sentado à mesa na esperança do maldito telefone tocar para reconciliar com sua curiosidade mortal. Levantou-se impulsivamente e foi tomar banho. Quando estava embaixo do chuveiro seus pensamentos começaram dominá-lo e seu corpo começou a pressentir algo desconhecido. Ficou com medo. Iniciou-se uma cadeia de respostas atômicas e seu coração disparou. Não conseguia controlar seus pensamentos que provocavam inclusive dores físicas. A sensação da morte o invadiu. Sabia que não era real, mas ao mesmo tempo sua imaginação tornava tudo verdadeiro. Correu para o espelho, olhou-se nos olhos e tentou-se acalmar retomando a respiração. Tornou-se um observador de si mesmo. Após alguns eternos segundos o telefone tocou novamente. Todo o sentimento de poucos minutos atrás retornou num piscar de olhos. Abriu a porta, sentiu os calafrios de um choque psicológico e correu para atender...Tirou o aparelho do gancho, colocou-o no ouvido e tentou escutar quem o chamava naquela hora de desespero. Do outro lado ninguém dizia nada. Perguntou quem era, mas a única coisa que ouviu foi sua própria voz ecoada no silêncio. Repetiu a pergunta várias vezes, mas apenas se ouvia. Sem entender, desligou. Ouviu novamente o silêncio e resolveu ligar para uma amiga. Mas era tarde, seu telefone estava desativado. Ao voltar para o banheiro o chuveiro continuava ligado e sentiu a presença de alguém se banhando. Aproximou-se lentamente da cortina que escondia e refletia uma silhueta de alguém que cantava alegremente uma canção conhecida. O medo o invadiu novamente. Não havia mais ninguém na casa, morava sozinho. Olhou para o chuveiro e viu que a água havia se transformado em sangue. Num súbito ato de coragem abriu a cortina e se viu cheio de marcas e ferimentos que sangravam e se misturavam com pétalas de rosas....
Esse foi o pesadelo que Harry teve em uma noite chuvosa. Quando acordou estava encharcado de suor. Sentiu uma estranha irrealidade. Era como se tivesse acabado de dormir e que a realidade era de fato o que acontecera minutos atrás. Sentou-se à beira da cama, olhou para o relógio e viu que faltavam alguns minutos para as três horas. Encostou a cabeça no travesseiro e ficou pensando na seqüência das imagens. Após alguns segundos o telefone tocou. Assustado, correu para atender.Era uma amiga convidando para comemorar o final do ano. Harry disse que odiava comemorações de Natal e seus correspondentes mercadológicos. A amiga ficou irritada e sem entender o que estava acontecendo. O que ela não entendia era que Harry tinha seus motivos. E estão ligados a sua história. Nascido em uma família católica, vivenciou o que muitos chamavam de má educacion. E toda aquela hipocrisia de comemoração de final de ano o deixava com enxaqueca. Fazia questão de não reviver esse passado maldito que o acompanhava. Era exatamente essa questão que o atormentava, pois, pensando nesses signos, agia de maneira moralmente diferente, trazendo grandes problemas para as outras esferas de sua vida, pois ninguém entendia todo aquele mau humor configurado em suas ações repentinas. Esta característica era um paradoxo em sua vida, pois a maioria do tempo era uma pessoa que reunia algumas características opostas a estes momentos: era compreensível, carinhoso e alegre.Após esse momento desagradável, Natália, questionou sobre os problemas pelos quais estava passando em viver solitário. Ele evitou falar, pois sabia que ninguém o entenderia. Afinal, uma vida solitária é pra ser vivida só, por mais óbvio que parece tal afirmativa. A amiga, entretanto, explicou os motivos de sua pergunta. A verdade se escondia nas próprias intenções de Natália.- Na verdade estou pensando em seguir o mesmo caminho. Não agüento mais esta vida em sociedade que cobra comportamentos pré-estabelecidos. É preciso ser assim e assado, caso você seja diferente, todos olham-no com compaixão.Harry odiou o comportamento de sua amiga. Quem deseja ser solitário não divide tal segredo com ninguém, pois assim que o fizer estará dividindo a própria solidão. No entanto, ele carregava um fardo em suas costas: havia contado para Natália suas intenções outrora solitárias. O estranho foi que ele começou a se identificar nas palavras que eram desabadas como um pedido de ajuda. Sua consciência surgiu como uma flor de lótus que desabrochava na lama do deserto de suas intenções sexuais. A diferença era que para ele Freud estava superado em seu id. Não passava de uma expressão de seu ego. A questão, entretanto, estava em seu superego que era o amor. Era o amor que orientava seu comportamento moral, se é assim que podemos chamar.O mundo, entretanto, não acostumou com o amor expressado em seus olhos cansados pelo tempo que ecoava em seus ouvidos torturados pelo telefone que sempre o chamava para viver. E foi o princípio do amor que lhe deu a coragem para sair do seu quarto entristecido pela lembrança de um amor esquecido. Procurava olhar a vida para além de uma porta aberta pela ilusão de uma paixão. Procurava! Mas nem sempre encontrava. E o telefonema foi o deslize do momento. Nele encontrou os olhos expressados pelas palavras de uma paixão desconhecida, porém, vivida.Viver as paixões! Este eram os fardos do seu destino. Era como uma realidade que se revivesse em sonho vinda através de um telefone que agora se fazia mudo.

Cotidiano diurno

Hoje acordei 8h23. Banhei-me, tomei o desjejum e me vesti para a festa do “Cotidiano diurno”. Escolhi uma roupa básica de listras verdes e amarelas e uma peruca azul. Terminei de me preparar às 8h49 e fiquei esperando ansiosamente a Marta, o Cleiton e a Beatriz que ficaram de passar em casa às 9h. Durante esses onze minutos fiquei imaginando o quão bom seria a festa, pois se tratava de uma comemoração organizada pelos trigêmeos cegos.Às 9h e 33 segundos eles chegaram. Marta estava deslumbrante. Vestia uma blusa lilás com flores laranjas e uma calça laranja com flores lilás. Cleiton foi o mais discreto: estava apenas com uma sunga com smiles posicionados em pontos estratégicos. Com seus lindos cabelos rosas, Beatriz vestia uma jaqueta também rosa com detalhes verdes que no conjunto formavam um rosto cujos olhos eram seus seios.A festa estava marcada para às 9h30. Era importante chegar no horário, os trigêmeos eram intolerantes com horários. Na verdade era uma estratégia que usavam para saber quem estava na festa, pois antes de começar eles ficavam na porta e tocavam as pessoas para as reconhecerem. Em uma de suas festas teve dois de nossos amigos que chegaram atrasados. Os trigêmeos já não estavam na porta, sorrateiramente eles conseguiram entrar no recinto. No decorrer da festa os trigêmeos estavam andando e trombaram com esses dois amigos que estavam no lugar errado. Houve uma discussão horrível entre eles resultando no corte dos dedos dos pés de nossos amigos.
Mas desta vez a festa ocorreu tudo bem. Cheguei em casa era 20h, tomei outro banho e fui dormir, pois amanhã tem outra festa...

Amor, morte e política: três movimentos de um ego

Não consigo te chorar.
Por isso te escrevo,
Te descrevo,
Te esqueço,
Te abandono na esquina.
Mas te reencontro.
E tento te esquecer,
Mas não consigo.
Por isso me abandono,
Me esqueço no vazio,
No frio,
No cigarro,
No teclado.
Tento te descrever,
Mas não me lembro
Da esquina que te deixei
E que te chorei tantas vezes.

Quando vivo penso no trabalho.
Quando trabalho penso na morte.
Quando morrer, não pensarei em mais nada.

Parte de uma massa controlada pelas próprias necessidades.
Necessidades criadas para controle da mente.
Mente que controla minha criação massificada.
TV, DVD, VHS, MP3, LX, PX: siglas de um universo moderno faústico.
Novelíngua! O controle é concretamente abstrato e eficaz.
Signos de uma nova ciência esquizofrênica.
Ótica de signos introjetados, consolidados.
Sem id, sem superego, sem dinheiro para se massificar
E tornar-se diferentemente igual.

O Baile

Viver é buscar-se a si em um baile de carnaval.
Fantasiado de Eros vivo intensamente.
E quando chega quarta-feira de cinzas me reencontro
Aos farrapos me despido e no espelho do meu quarto me vejo.
Solitário, cansado de ser o que é e buscar o que não é.
Desistir? Jamais! O baile apenas começou e o guarda-roupa está aberto pelo tempo.