9/08/2006

O Telefone

Ele estava sentado à mesa quando o telefone tocou. Ficou olhando e pensando quem poderia ser àquela hora da madrugada. O primeiro pensamento foi de uma notícia de falecimento. Mas quem teria morrido que merecesse a sua atenção? Quem precisaria de seu consolo, seus pêsames? Não conseguiu encontrar ninguém no passado de sua memória. Resolveu não atender. Após cinco minutos o telefone toca novamente. O desejo de não atender sobrepôs a qualquer sentimento de compaixão pelo próximo. Odiava tentar sentir a dor alheia, não por uma questão de egoísmo, mas por ter a consciência que é um estado impossível e degradante do homem. Para ele a dor e o prazer sempre circularam na esfera individual e qualquer tentativa de solidariedade emocional seria uma falsidade moral condicional. De fato, era uma tentativa de racionalizar a dor que, paradoxalmente, o fazia sofrer, mas com a sutil e importante diferença de ser o seu próprio sofrimento e não uma simpatia cristã pelo sentimento do próximo.Resolveu atender! Em vão, pois assim que pegou o telefone já não havia mais o outro. A curiosidade instaurou-se em sua mente e o inferno em seu coração. Irritou-se com todas formas de comunicação moderna. Questionou-se porque o homem criava instrumentos para sua própria tortura emocional. Por que tanto masoquismo científico? Pra que tornar a natureza um instrumento de contemplação da onipotência científica? Por que se preocupar em ser, quando de fato o importante é apenas ser? Quanta mediocridade humana. No entanto, ao lado desse tormento, existia algo de bom: a solidão. Começou a encarar todas essas inovações como um mecanismo ortopédico social que lhe proporcionava o prazer da solidão. Sentia-se bem no retiro de si mesmo, pois para ele a solidão não era isolamento, mas uma busca de diferentes formas de comunicação que atendessem aos seus desejos secretos e nefastos. Era um olhar para si e enxergar o outro dentro dos seus próprios olhos e encontrar o caminho para satisfazer seus sonhos.Continuava sentado à mesa na esperança do maldito telefone tocar para reconciliar com sua curiosidade mortal. Levantou-se impulsivamente e foi tomar banho. Quando estava embaixo do chuveiro seus pensamentos começaram dominá-lo e seu corpo começou a pressentir algo desconhecido. Ficou com medo. Iniciou-se uma cadeia de respostas atômicas e seu coração disparou. Não conseguia controlar seus pensamentos que provocavam inclusive dores físicas. A sensação da morte o invadiu. Sabia que não era real, mas ao mesmo tempo sua imaginação tornava tudo verdadeiro. Correu para o espelho, olhou-se nos olhos e tentou-se acalmar retomando a respiração. Tornou-se um observador de si mesmo. Após alguns eternos segundos o telefone tocou novamente. Todo o sentimento de poucos minutos atrás retornou num piscar de olhos. Abriu a porta, sentiu os calafrios de um choque psicológico e correu para atender...Tirou o aparelho do gancho, colocou-o no ouvido e tentou escutar quem o chamava naquela hora de desespero. Do outro lado ninguém dizia nada. Perguntou quem era, mas a única coisa que ouviu foi sua própria voz ecoada no silêncio. Repetiu a pergunta várias vezes, mas apenas se ouvia. Sem entender, desligou. Ouviu novamente o silêncio e resolveu ligar para uma amiga. Mas era tarde, seu telefone estava desativado. Ao voltar para o banheiro o chuveiro continuava ligado e sentiu a presença de alguém se banhando. Aproximou-se lentamente da cortina que escondia e refletia uma silhueta de alguém que cantava alegremente uma canção conhecida. O medo o invadiu novamente. Não havia mais ninguém na casa, morava sozinho. Olhou para o chuveiro e viu que a água havia se transformado em sangue. Num súbito ato de coragem abriu a cortina e se viu cheio de marcas e ferimentos que sangravam e se misturavam com pétalas de rosas....
Esse foi o pesadelo que Harry teve em uma noite chuvosa. Quando acordou estava encharcado de suor. Sentiu uma estranha irrealidade. Era como se tivesse acabado de dormir e que a realidade era de fato o que acontecera minutos atrás. Sentou-se à beira da cama, olhou para o relógio e viu que faltavam alguns minutos para as três horas. Encostou a cabeça no travesseiro e ficou pensando na seqüência das imagens. Após alguns segundos o telefone tocou. Assustado, correu para atender.Era uma amiga convidando para comemorar o final do ano. Harry disse que odiava comemorações de Natal e seus correspondentes mercadológicos. A amiga ficou irritada e sem entender o que estava acontecendo. O que ela não entendia era que Harry tinha seus motivos. E estão ligados a sua história. Nascido em uma família católica, vivenciou o que muitos chamavam de má educacion. E toda aquela hipocrisia de comemoração de final de ano o deixava com enxaqueca. Fazia questão de não reviver esse passado maldito que o acompanhava. Era exatamente essa questão que o atormentava, pois, pensando nesses signos, agia de maneira moralmente diferente, trazendo grandes problemas para as outras esferas de sua vida, pois ninguém entendia todo aquele mau humor configurado em suas ações repentinas. Esta característica era um paradoxo em sua vida, pois a maioria do tempo era uma pessoa que reunia algumas características opostas a estes momentos: era compreensível, carinhoso e alegre.Após esse momento desagradável, Natália, questionou sobre os problemas pelos quais estava passando em viver solitário. Ele evitou falar, pois sabia que ninguém o entenderia. Afinal, uma vida solitária é pra ser vivida só, por mais óbvio que parece tal afirmativa. A amiga, entretanto, explicou os motivos de sua pergunta. A verdade se escondia nas próprias intenções de Natália.- Na verdade estou pensando em seguir o mesmo caminho. Não agüento mais esta vida em sociedade que cobra comportamentos pré-estabelecidos. É preciso ser assim e assado, caso você seja diferente, todos olham-no com compaixão.Harry odiou o comportamento de sua amiga. Quem deseja ser solitário não divide tal segredo com ninguém, pois assim que o fizer estará dividindo a própria solidão. No entanto, ele carregava um fardo em suas costas: havia contado para Natália suas intenções outrora solitárias. O estranho foi que ele começou a se identificar nas palavras que eram desabadas como um pedido de ajuda. Sua consciência surgiu como uma flor de lótus que desabrochava na lama do deserto de suas intenções sexuais. A diferença era que para ele Freud estava superado em seu id. Não passava de uma expressão de seu ego. A questão, entretanto, estava em seu superego que era o amor. Era o amor que orientava seu comportamento moral, se é assim que podemos chamar.O mundo, entretanto, não acostumou com o amor expressado em seus olhos cansados pelo tempo que ecoava em seus ouvidos torturados pelo telefone que sempre o chamava para viver. E foi o princípio do amor que lhe deu a coragem para sair do seu quarto entristecido pela lembrança de um amor esquecido. Procurava olhar a vida para além de uma porta aberta pela ilusão de uma paixão. Procurava! Mas nem sempre encontrava. E o telefonema foi o deslize do momento. Nele encontrou os olhos expressados pelas palavras de uma paixão desconhecida, porém, vivida.Viver as paixões! Este eram os fardos do seu destino. Era como uma realidade que se revivesse em sonho vinda através de um telefone que agora se fazia mudo.

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