9/08/2006

A escolha de um destino

Harry sabia o significado das coisas, mas não sabia o seu destino. Também temos que entender o contexto de seus pensamentos. Era domingo. Ele viajara o dia todo e foi na viagem que tomou consciência. Já vivia toda aquela situação, apenas não entendia. Diziam que a genética era a culpada. No entanto, para ele que seguia princípios filosóficos procurava outra resposta para sua calvície. A consciência deu-se a partir da leitura de Kundera, que lhe falava: “(ele mesmo ria ao pensar em sua carta de adeus: nunca aceitarei ser calvo: adeus!)”?. Harry sabia o significado. Entendia cada vírgula, cada parênteses e ponto final de sua situação, mas não sabia o destino de tudo isso. Afinal, o futuro só pertence ao futuro. Procurava uma resposta, mas estava cansado. Afinal, viajara 9h ininterrompidas.Quando foi fazer a barba, percebeu que poucas pessoas o entendiam. Naquele momento pensava em Nietzsche, que lhe dizia: “A verdadeira felicidade de minha existência, talvez a sua peculiaridade, consiste no seu destino: eu, para exprimi-lo em forma enigmática, como meu pai, já estou morto; como minha mãe, ainda vivo e envelheço”. Começava e entender que a razão de sua calvície era sua mãe, tanto genética, quanto filosoficamente (ou psicologicamente para os edipianos). Estava no auge desse pensamento, quando tocou o telefone. Limpou-se do creme de barbear e foi atender.
Uma conversa inesperada
- Alô!- O que você estava fazendo? Faz meia hora que estou ligando e você não atende. Tenho certeza que está com outra. Quem é a vagabunda? – era uma voz firme e agressiva que refletia segurança em seus pensamentos.- Você deve estar equivocada. Eu não sei do que está falando – respondeu com ar de irritação, embora tentasse transparecer certa serenidade.- Não se faça de idiota. Eu sei que está com outra. E não vem me dizer que é sua mãe, pois dessa vez não acredito.Coincidência ou não, ela sabia que ele estava em companhia de sua mãe, mesmo que em pensamento. Então antes que desligasse o telefone tentou lhe explicar mais uma vez:- Já lhe disse que você deve estar equivocada. Eu não sei do que está falando, deve ter ligado errado.- Impossível! Você está dizendo que não seu meu destino?Não conseguia entender como aquela mulher desconhecida conseguia decifrar todas suas indagações. Ficou confuso com toda situação. Não sabia mais o que dizer. E num ato precipitado disse a mulher para comprovar com seus próprios olhos e lhe deu o endereço. Ela o anotou e inesperadamente disse que o procuraria, desligando o telefone logo em seguida.
A espera
Ao desligar o telefone não acreditava que no que havia acontecido. Ficou perplexo e não depositou crédito no intento da desconhecida. Tentou retomar seu pensamento, mas foi em vão. Olhou-se no espelho e já não conseguia mais fazer a barba. Sentiu-se repúdio de si. Auto-peidade junto com autodestruição. Queria matar, morrer. Qualquer coisa que estivesse ligado à morte o satisfaria. Tudo por razão de um telefonema inesperado, equivocado. Uma situação dessa o fazia pensar nas oportunidades que perdera na vida. O acaso era algo que temia e amava. Esperava encontrá-lo no bar, na rua, na livraria, no restaurante, etc., mas sempre procurava dentro do espelho. Vivia a eterna busca contraditória de ligar sua individualidade ao coletivo. Harry morava sozinho. E era isso que o impedia de se matar. Ficava imaginando seu corpo definhando dias e dias até algum vizinho intrometido ver que não havia mais movimento na casa, sentisse o mau cheiro e averiguasse a situação. Na tentativa de afastar tais pensamentos voltou a pensar na mulher desconhecida. Começou a acreditar que ela poderia aparecer de repente em sua casa. Afinal, ela parecia estar fora de si. A autodestruição foi substituída pela angústia, ou ambos, já não sabia o que sentia. Perambulava pela casa sem rumo certo. Procurou o que fazer, mas nada lhe centrava a atenção. Nunca sentiu tanto a falta de alguém como naquele dia. Queria sons e colo e olhos e pele e cheiro e gosto. Não queria mais pensar. Queria sentir. Sentir a dor de um amor, de uma paixão. Pegou seu casaco e saiu.
O ponto de mutação
Era uma noite fria de inverno. Seus lábios estavam rachados pelo vento frio e seu olhar perdido no infinito. Toda mulher que cruzava seu caminho pensava na possibilidade de ser a desconhecida. Pensamento em vão, pois nem imaginava como era. Queria interpelá-las, mas faltava-lhe coragem. Caminhou até encontrar um bar. Nunca freqüentava os mesmos lugares. Gostava de entrar em lugares desconhecidos para quem sabe encontrar um acaso. O bar cheirava maconha e tocava Bob Marley no fundo. Havia três rodas de pessoas fumando a erva. Inseriu-se em uma e ali aconteceu o ponto de mutação. O ponto de mutação significa o salto qualitativo de algo que vem se piscosomando em uma existência. É a soma de fatores e sentimentos que se interligam a uma pessoa e uma realidade específica. É o mesmo que criar um sonho que encaixe no próprio sonho. E para Harry os elementos dessa soma era a paixão negada pela sua própria inexistência real. De fato, o motivo dessa inexistência era o próprio medo de não ser correspondido. O que naquele dia aconteceu. Ele realmente não entendeu o porque da superação do medo, mas isso não importava. Então deixou transbordar tudo que havia dentro de si, ficando perdido sem saber mais quem era. Estava apaixonado. Quase todas suas paixões eram inventadas. Entregava-se tanto que sempre invertia a situação. Em outras ocasiões, quando se interessava por alguém criava uma relação tão intensa que estabelecia laços de amizade e não conseguia voltar com êxito à paixão. Ficava preso em sua própria entrega. Por isso preferia inverter e antecipar a declaração. O problema é que as mulheres nunca entendiam tal situação. Julgavam-no como precipitado. De fato era. Mas fazer o que? Não conseguia trair seus impulsos e desejos. Não tinha nada a perder. Horas a trás pressentia que seu destino era a solidão, então depositou grandes esperanças nessa loucura que inventou.Foram para sua casa. Seus sentidos estavam alterados. Não sabia bem ao certo como agir. Tentou fazer tudo com perfeição, mas se atrapalhava nos movimentos. Era como se fosse sua primeira vez. Precipitou-se no gozo. Afinal, não conseguia trair seus impulsos e desejos.
Uma letra (des)conhecida
Acordou no outro dia ao lado da mulher. Estavam nus. Seu corpo era lindo e suas curvas perfeitas. Não conseguia tirar os olhos dela. Tentou lembrar do início da conversa, mas não conseguiu. Afinal, ter coragem para superar o medo e o remorso do passado o lançou a uma dimensão para além do imediato. Lembrava que ao passar o temor inicial, seus sentidos o guiaram para o mais profundo de seu interior. Os olhos de sua “escolhida” o deixaram na solidão de seu próprio deserto. Mas mesmo só, estava feliz por tê-la encontrado. Em toda sua vida ele considerava ter namorado de fato apenas uma vez. E avaliava que nesta única e atormentada vez ele quem foi o escolhido, talvez pelo acaso, ou talvez pela sua própria companheira. Não importa. O fato é que toda vez que ousava escolher, algo maior interrompia seu futuro. Por isso atribuía um grande valor a suas escolhas, pois acreditava ser dono de seu destino amoroso. E estava disposto a tudo para construí-lo. Estava disposto a se entregar por inteiro como na sua primeira vez. Mesmo não conhecendo as virtudes, defeitos e manias de sua “escolhida”. Paradoxal e irracional? Sim, mas nunca procurou razão para estes momentos, pois não havia.Levantou-se. Olhou para as roupas jogadas pelo chão do quarto e avistou um pequeno pedaço de papel. Percebeu que não era sua letra. Não conseguia lê-lo. Agachou-se, pegou e viu seu endereço escrito nele.

Um comentário:

Simone Costa disse...

Adoreiiiiiii!! Massa meesmo!! Adorei sua página!! da lá uma olhadinha na minha:

http://leiapoema.blogspot.com